terça-feira, agosto 05, 2008

História*

Na cidade em que nasci
havia um bicho morto em cada sala
mas nunca se falou a respeito
os meninos cavávamos buracos nos quintais
as meninas penteavam bonecas
como em qualquer lugar do mundo
nas salas o bicho morto apodrecia
as tripas cobertas por moscas
(os anos cobertos de culpas)
e ninguém dizia nada
mais tarde bebíamos cerveja
as brincadeiras eram junto com as meninas
a noite aliviava o dia
das janelas o sangue podre
(ninguém tocava no assunto)
escorria lento e seco
e a cidade fedia e já era insuportável

parti à noite despedidas de praxe
embora sem dúvidas chorasse

* poema de Fabrício Corsaletti

quarta-feira, junho 18, 2008

Hoje levantei-me cedo
pintei de tacula e água fria o corpo aceso
não bato manteiga
não ponho o cinto
vou para o sul saltar o cercado

[Paula Tavares-poeta angolana]

segunda-feira, abril 28, 2008

Abril despedaçado

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus,
pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido
como o diabo.

[trechos: Poema de Sete Faces, Drummond]


Mulher Sentada, Ismael Nery

Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

[ trecho: A um ausente, Drummond]

quarta-feira, abril 02, 2008

Não estou lá

"Quando me traíram ou assassinaram, quando alguém foi embora
para sempre, ou perdi o que de melhor me restava, ou quando
soube que vou morrer eu não como. Não sou ainda esta potência,
essa ruína. Empurro o prato, rejeito a carne e seu sangue."
[O jantar - Clarice Lispector]

sexta-feira, março 21, 2008

Meio-TermoCorpos


Fotos: Ana. Fevereiro 2008

OS POLVOS


É com fome que escreve este parágrafo.
Com a irritação e a injustiça da fome. A fome do estômago, e a outra fome,
maior: a fome metafísica, insaciável, perplexa.
Jogou fora seu prato de comida, o almoço, o jantar, sua ceia.
Os polvos. Bem preparados à melhor moda espanhola: azeite de oliva, alho,
tomates vermelhíssimos, pimentões.
Polvos: vermelhíssimos, rosados, redondos, suaves, macios. De dar água na boca.
No lixo de plástico azul, com restos de ossos do porco assado, cascas de ovos,
latas de sardinha malcheirosas: virão os vermes e as varejeiras.
(Certa vez teve um sonho: arrancava seu corpo como se fosse uma
roupa e, debaixo do corpo, sua verdadeira natureza se revelava uma
maravilhosa luz azul.)
Semana passada, pela primeira vez, aprendeu a comer polvos. Na casa de
um rapaz espanhol, que o convidou, e depois dormiram juntos.
Abraçados na cama escura (cabeças de polvos, se movimentando nas
profundezas do mar negro: sexo, sexos em flor, ancestral, masculino, líquido)
se lamberam, se penetraram, se desperdiçaram um no outro.
O rapaz, apaixonado, lhe chamava de polvinho: mi pulpito.
E agora joga fora o prato, o almoço, a noite. Joga fora o polvo que súbita e
gulosamente decidira cozinhar.
Joga-o fora, mas ainda sente a fome. Joga-o fora, tão precipitadamente
como agora vem a ânsia de devorá-lo. Devorá-lo mesmo no lixo - no lixo
azul -, meu polvinho.
[Renato Rezende]

terça-feira, fevereiro 26, 2008

"ACORDEI GRÁVIDO

E UMA DÚVIDA DILACERA MINHAS PARTES:
QUEM SERIA A MÃE DE MEU FILHO?
DEMÔNIOS GUARDADOS ME VISITAM
ENQUANTO RETOCO PARA A POSTERIDADE
A MAQUIAGEM DE ARCO-ÍRIS..."