sexta-feira, março 21, 2008

Meio-TermoCorpos


Fotos: Ana. Fevereiro 2008

OS POLVOS


É com fome que escreve este parágrafo.
Com a irritação e a injustiça da fome. A fome do estômago, e a outra fome,
maior: a fome metafísica, insaciável, perplexa.
Jogou fora seu prato de comida, o almoço, o jantar, sua ceia.
Os polvos. Bem preparados à melhor moda espanhola: azeite de oliva, alho,
tomates vermelhíssimos, pimentões.
Polvos: vermelhíssimos, rosados, redondos, suaves, macios. De dar água na boca.
No lixo de plástico azul, com restos de ossos do porco assado, cascas de ovos,
latas de sardinha malcheirosas: virão os vermes e as varejeiras.
(Certa vez teve um sonho: arrancava seu corpo como se fosse uma
roupa e, debaixo do corpo, sua verdadeira natureza se revelava uma
maravilhosa luz azul.)
Semana passada, pela primeira vez, aprendeu a comer polvos. Na casa de
um rapaz espanhol, que o convidou, e depois dormiram juntos.
Abraçados na cama escura (cabeças de polvos, se movimentando nas
profundezas do mar negro: sexo, sexos em flor, ancestral, masculino, líquido)
se lamberam, se penetraram, se desperdiçaram um no outro.
O rapaz, apaixonado, lhe chamava de polvinho: mi pulpito.
E agora joga fora o prato, o almoço, a noite. Joga fora o polvo que súbita e
gulosamente decidira cozinhar.
Joga-o fora, mas ainda sente a fome. Joga-o fora, tão precipitadamente
como agora vem a ânsia de devorá-lo. Devorá-lo mesmo no lixo - no lixo
azul -, meu polvinho.
[Renato Rezende]